A recuperação judicial do produtor rural – Uma análise no âmbito do direito comparado e o novo precedente fixado pelo STJ

A recuperação judicial do produtor rural – Uma análise no âmbito do direito comparado e o novo precedente fixado pelo STJ

A recuperação judicial do produtor rural – Uma análise no âmbito do direito comparado e o novo precedente fixado pelo STJ

A problemática brasileira

Não é novidade que as diversidades no mundo rural fazem parte da própria história da humanidade.

Com o passar dos séculos, sobreveio não só o aperfeiçoamento do homem, como também o desenvolvimento/avanço de uma infinidade de tecnologias que garantiram, e vêm garantindo ao homem do campo, segurança para a produção agrícola e pastoril.

Contudo, mesmo diante de toda a modernização que proporcionou ao homem do campo extrair o máximo de produtividade por hectare de terra, não foi possível eliminar certos fatores responsáveis pelas crises no âmbito rural, tais como mudanças climáticas, hábitos de consumo, alterações na política comercial (escalada tarifária), emprego de subsídios por países concorrentes, embargos econômicos, etc.

Ademais, muitos destes fatores levaram vários países produtores e concorrentes do Brasil a aperfeiçoarem suas leis internas, mais especificamente no tocante à falência e ao reerguimento do produtor rural pessoa jurídica e pessoa física, proporcionando maior segurança jurídica ao setor agrícola e, consequentemente, à economia interna.

Atualmente, foi levado a debate perante o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial n. 1.800.032/MT, importante tese jurídica acerca da possibilidade do produtor rural pessoa jurídica solicitar, após o interstício de 2 anos, a recuperação judicial englobando não somente as dívidas adquiridas no período da inscrição na Junta Comercial, como as anteriores ao registro. O julgamento do caso sub judice encontrava-se empatado. Entretanto, com a retomada do julgamento em 05 de novembro do presente ano, a Quarta Turma entendeu, por maioria, dar vigência a tese defendida pelo produtor rural.

Logo, relevante analisarmos a matéria sob o enfoque da legislação de países que exercem concorrência direta ao agronegócio brasileiro.

Breve análise do tema no sistema jurídico brasileiro

A priori, convém destacar que o artigo 4o, inciso VI, do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964), conceitua, desde a década de 60, a empresa rural como sendo o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural […] (grifei). Ou seja, o dispositivo legal, mesmo sem condicionar a inscrição do produtor rural no Registro de Empresas, já considerava a pessoa física que exercia atividades inerentes ao ofício como empresa rural.

No ano de 2002, com o advento do novo Código Civil, foi estabelecido no artigo 970 que ao empresário e ao pequeno empresário rural seriam assegurados pela lei tratamento favorecido, diferenciado e simplificado quanto à inscrição e aos efeitos decorrentes. Na sequência, em complemento ao dispositivo antecedente, o artigo 971 estabeleceu que o empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

Interpretando de forma teleológica tais dispositivos de lei, são extraídos dois regramentos importantes, quais sejam: (i) o empresário rural possui tal atributo antes mesmo da sua inscrição e, (ii) caso perfectibilize sua inscrição no Registro de Empresa, os efeitos desta serão diferenciados e favorecidos.

Diante desse contexto, o Conselho da Justiça Federal, através de suas Jornadas de Direito, as quais buscam delinear posições interpretativas sobre as normas vigentes (indicativos de interpretação) estabeleceu, na III Jornada de Direito Civil, realizada no ano de 2004, ao interpretar os artigos 971 e 984, ambos do Código Civil, que o registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial, sendo inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção (enunciado 202).

Por conseguinte, em fevereiro de 2005, foi publicada a Lei n. 11.101 (disciplina a recuperação judicial, extrajudicial e a falência), a qual trouxe instituto inspirado no modelo Norte Americano (Chapter 11 do Bankruptcy Code), adotando como premissas a preservação da empresa, o pleno emprego, a função social atrelada e o estímulo à atividade econômica, deixando célere e livre o reerguimento de empresas.

Outrossim, a referida Lei, ao estabelecer que se sujeitam à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que vencidos (caput do art. 49), corrigiu importante erro que existia na legislação anterior.

Na sequência, após o país ter vivenciado mais de uma década de controvérsias, a respeito da aplicação ou não do instituto da recuperação em face do produtor rural pessoa física e dos efeitos do registro, em 07.06.2019, a III Jornada de Direito Comercial, promovida pelo CJF, aprovou onze enunciados pertinentes à Crise da Empresa, dos quais merecem destaques os enunciados 96 e 97, que estabeleceram, respectivamente:

A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis;
O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.

Em razão deste quadro, aliado ao fato do grande endividamento agrícola dos produtores rurais e sendo a recuperação judicial um mecanismo de manutenção do negócio, das terras e do emprego, mister traçar um paralelo entre a nossa legislação com outros países como os Estados Unidos da América, França, Alemanha e Canadá, pois, não obstante representarem sistemas jurídicos diversos, common law e civil law, são considerados países que exercem grande concorrência ao Brasil no âmbito do agronegócio.

Assim, conhecer o tratamento legal que os agricultores, pessoas físicas e/ou pessoas jurídicas, com ou sem personalidade, recebem em tais países, é extremamente relevante, eis que há muito tempo estamos experimentando, no âmbito do comércio internacional, a abertura de mercados e, em razão disto já podemos verificar as consequências em nações que não se prepararam para ingressar nesta dialética entre globalização, desenvolvimento econômico e proteção do mercado interno.

O sistema jurídico norte-americano

O Título 11 do Código dos Estados Unidos (U. S. Code) contém o Código de Insolvência, denominado Bankruptcy Code , que possui cinco tipos diferentes de processos sob as duas grandes categorias: Liquidação e Recuperação. Os procedimentos individuais são divididos por Capítulos. O Capítulo 7 diz respeito à Liquidação, enquanto os Capítulos 9, 11, 12, e 13 envolvem a Recuperação.

O Capítulo 11 do Bankruptcy Code é usualmente chamado de reorganization bankruptcy, o qual normatiza a recuperação da empresa e da pessoa natural em dificuldades financeiras. Pode-se afirmar que o Capítulo 11 é regra geral.

O Capítulo 12 teve origem após a crise agrícola que o Estado Americano enfrentou nos anos 80, razão pela qual ocasionou a aprovação, pelo Congresso Americano, de uma legislação de emergência em 1986, que contemplava a recuperação dos agricultores, a fim de que os mesmos reorganizassem suas dívidas e mantivessem suas terras. Embora inicialmente temporário foi prorrogado até virar lei em 2005, tendo sido introduzido na Lei Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act (BAPCPA).

Destaque-se que, o Capítulo 12 se aplica especificamente ao agricultor familiar com renda regular, pescadores, fazendas e pessoa jurídica elegíveis (family farmers and family fisherman), com dívida agregada de US $ 4.411.400,00 (quatro milhões quatrocentos e onze mil e quatrocentos dólares). Entretanto, em 23.08.2019, o Presidente Donald Trump sancionou a lei Family Farmer Relief Act of 2019 – HR 2336, aprovada anteriormente pelo Congresso Americano, elevando o limite da dívida para 10 milhões de dólares para os produtores rurais buscarem o alívio nos termos do Capítulo 12.

Outrossim, na hipótese do devedor agrícola ter dívida agregada que ultrapassa os requisitos do Capítulo 12, pode o mesmo requerer a reorganização pela regra do Capítulo 11 (mais custoso e complexo), permanecendo na posse dos bens e continuando a administrar os ativos, sujeitando-se às obrigações específicas.

Saliente-se que o instituto da recuperação prevista no Estado Americano não se restringe à pessoa jurídica (empresas), eis que contempla os Municípios (Capítulo 9) e a pessoa física, que pode se utilizar do Capítulo 13, chamado de wage earner’s plan, caso possua renda regular e dívidas sem garantias até US $ 394.725,00 (trezentos e noventa e quatro mil setecentos e vinte e cinco mil dólares) ou dívidas com garantias até US $ 1.184.200,00 (um milhão cento e oitenta e quatro mil e duzentos dólares).

Dessa forma, no âmbito da Lei Americana, é possível se afirmar que o produtor rural, tanto na qualidade de pessoa natural ou jurídica, pode requerer a recuperação judicial ou extrajudicial e nesta, também chamada de jurisdição administrativa sujeita-se apenas à homologação pelo juiz do plano de recuperação, não encontrando, assim, nenhum entrave legal para tanto.

O sistema jurídico francês

No que tange ao regime jurídico francês da recuperação do devedor, constata-se, assim como no regime americano, alguns pontos comuns ao regime brasileiro e outros divergentes.

A última grande reforma no sistema Le Droit des Entreprises em Dificulte ou Droit des Procédures Colletives ocorreu com a Loi n. 2005-845 de julho de 2005 e, através da Ordonnance n. 2008-1345 de dezembro de 2008, enfatizou a necessidade de favorecer a recuperação de empresas em dificuldades na forma amigável.

A recuperação judicial foi consolidada no Livro VI, do Código Comercial Francês, intitulado Des difficultés des entreprises, o qual prevê no Título II o procedimento de recuperação judicial (De la sauvegarde) e no Título III, o procedimento com intervenção judicial (Du redressement judiciaire).

Na espécie, tanto o instituto da sauvegarde (Article L620-2) como do redressement judiciaire (Article L631-2) são aplicáveis a qualquer pessoa física envolvida em uma atividade comercial, artesanal ou agrícola e profissional liberal, bem como para a pessoa jurídica de direito privado, com o objetivo de manter a atividade empresarial e o emprego, bem como a apuração do passivo.

Ademais, em geral, os dois procedimentos funcionam da mesma maneira, existindo pouca diferença entre a sauvegarde e a redressement judiciaire. Todavia, a principal diferença é que a sauvergarde é preventiva, sendo um incentivo ao devedor que está enfrentando dificuldades financeiras, mas não está em um estado de inadimplência, enquanto na redressement judiciaire, o devedor deixa de honrar com os compromissos.

Diante disso, vislumbra-se que na França existe mecanismo de proteção ao devedor similar à recuperação judicial existente no Brasil, contudo mais abrangente, atrativo e protetivo ao homem do campo, não condicionando a inscrição do produtor rural no Registro Público de Empresas Mercantis, como pré-requisito para fazer jus ao reerguimento da empresa, bastando o efetivo exercício da atividade rurícola.

O sistema jurídico alemão

Até o ano de 1998, a Alemanha ainda era um país dividido em termos de leis de insolvência. Na parte ocidental do país era aplicado o sistema antigo de falência, datado do ano de 1877. Este fato levava a uma situação curiosa na cidade de Berlim, pois conforme a localização do devedor na cidade, a insolvência era resolvida com fundamento em diferentes normas.

Em face disto, a Lei de Insolvência germânica foi regulamentada e consolidada no ano de 1999, denominada Insolvenzordnung – InsO. Na espécie, o legislador alemão optou por uma mudança geral na perspectiva do novo diploma ao adotar o termo “insolvência” em vez de “falência” (Konkursordnung), uma vez que o sistema anterior não garantia o pleno emprego e a recuperação da empresa.

Diante dessa mudança, a Alemanha adotou uma abordagem unitária, no sentido de que existe apenas um processo de insolvência que, em última análise, e dependendo da decisão dos credores, será tratado como um processo de liquidação ou de recuperação. Ressalte-se que, a reunião de credores, evento de vital importância, pois nela são tomadas as principais decisões do processo de insolvência. A Seção 2 da Parte 4 da Lei Germânica, que vai dos artigos 156 a 164, trata da decisão a respeito da recuperação [2. Abschnitt – Entscheidung über die Verwertung (§§ 156 – 164)].

Outro ponto que merece destaque é que a Insolvenzordnung – InsO, em conformidade com a mesma sistemática da lei norte-americana e francesa, abrange a insolvência de pessoas físicas e jurídicas, e estas com ou sem personalidade jurídica (§ 11 da InsO)

De regra, no direito alemão, o processo de insolvência sujeita todas as empresas (GmbH, AG, Genossenschaft, Verein, etc), bem como a pessoa natural que exerce atividade econômica independente, como landwirte (agricultores), ärzten (médicos), etc.

Outra importante regra prevista na Lei de Insolvência germânica é a isenção de dívida residual (Restschuldbefreiung – § 300 da InsO), que significa que, ao final do processo de insolvência, o devedor será liberado das dívidas remanescentes que não foram adimplidas. Na prática, consiste em procedimento à parte. O pedido de isenção deve ser solicitado juntamente com o pedido de insolvência. Todavia, o § 302 da InsO estabelece um rol de dívidas que não podem ser quitadas. A ideia do Restschuldbefreiung é de que o insolvente tenha um recomeço sem dívidas.

No que diz respeito às instituições financeiras públicas e privadas e companhias de seguro, as mesmas não são abrangidas pela InsO, eis que possuem regulamentação própria.

O sistema jurídico canadense

O Canadá é uma federação dividida em 3 territórios e 10 províncias que, sob o ponto de vista político-administrativo, possuem semelhanças com os estados brasileiros. Cada província tem suas próprias leis que regem questões relacionadas ao patrimônio e ao comércio, com algumas exceções, dentre elas a insolvência, que são normatizadas por lei federal.

A lei de insolvência do Canadá é estabelecida principalmente em dois estatutos federais, o Bankruptcy and Insolvency Act (BIA – R.S.C., 1985, c. B-3) e a Companies’ Creditors Arrangement Act (CCAA – R.S.C., 1985, c. C-36).

Contudo, existem mais três normas que tratam do tema insolvência, quais sejam, a Farm Debt Mediation Act, a Wage Earners Protection Program Act (WEPP) e a Winding-up ad Restructuring Act.

A BIA, aprovada em 1985, tem por objeto a facilitação e a reorganização dos devedores insolventes. É uma lei abrangente que prevê tanto insolvências pessoais como corporativas. Oferece várias alternativas, desde a insolvência definitiva de pessoas físicas ou jurídicas a propostas menos extremas. Em situações em que a reorganização é possível, a BIA fornece aos indivíduos e empresas de qualquer porte, meios para realizar propostas aos credores, com o intuito de reestruturar as dívidas. Este procedimento é denominado de consumer proposals for consumers and reorganizations for corporation.

Já a CCAA, também aprovada no ano de 1985, se aplica à reorganização de empresas com mais de US $ 5 milhões de dólares em dívidas. Diferentemente do procedimento estabelecido pela BIA, a CCAA prevê um processo conduzido pelo Judiciário e permite aos juízes maior flexibilidade na determinação da melhor forma de lidar com os casos específicos. Em termos comparativos, a CCAA fornece uma visão geral da estrutura empresarial para permitir a reorganização, enquanto a BIA possui regras mais específicas para reorganização de empresas ou indíviduos.

Acerca da Wage Earners Protection Program Act – WEPP (S.C. 2005, c. 47, s. 1), esta é uma lei criada especificamente para proteger o trabalhador. Tal norma estabelece um programa de pagamentos de salários aos trabalhadores por parte dos empregadores que estão em estado de insolvência ou em falência. A WEPP é um programa desenvolvido pelo Governo Federal do Canadá em que, caso o trabalhador, atendendo aos requisitos legais (the eligibility period), fará jus a uma compensação pelas verbas salariais não adimplidas pelo insolvente ou falido.

A Winding-up and Restructuring Act – WRA (R.S.C., 1985, c. W-11) normatiza a insolvência e a falência de instituições financeiras, bancos estrangeiros autorizados, empresas fiduciárias, companhias de seguros, etc.

Por fim, a Farm Debt Mediation Act – FDMA (S.C. 1997, c. 21) que, após receber o Royal Assent no ano de 1997, passou a vigorar em 1.º de abril de 1998.

A FDMA substituiu a Lei de Revisão da Dívida Agrícola de 1986, haja vista que na época os agricultores canadenses acumulavam dívidas em razão das dificuldades financeiras ocasionadas pela crise agrícola do início dos anos 80. Tal normativo tem como objetivo regular disputas entre produtores rurais e seus credores, fornecendo opções para os agricultores insolventes obterem a suspensão de qualquer procedimento de cobrança de dívidas por um curto período (short standstill period), com a assistência de um administrador previamente nomeado, a fim de que reorganize as finanças ou solicite a mediação em face dos credores, conforme previsto na Seção 5 (1) (a) – mediação com suspensão de processo e na Seção 5 (1) (b) – apenas mediação, ambas da referida Lei.

Aliás, a FDMA possui importante regra procedimental no tocante aos credores com garantias, que pretendam o adimplemento de uma dívida, qual seja, a prévia notificação por escrito do produtor rural, concedendo o prazo de 15 dias úteis para solução do débito, antes de executar as medidas pertinentes [seção 21 (1) (a) e (b), da FDMA]. Na hipótese do credor não cumprir a referida regra, qualquer ato praticado será reputado como nulo [seção 22 (1), da FDMA].

A título ilustrativo, destaque-se que, em 2010, a Supreme Court of British Columbia, apreciando o caso Harding v. 0780194 B.C. Ltd.,  2010 BCSC 5, o qual discutia se o casal Harding (Kenneth Frederick Harding e Gwenith Eleanor Harding) teria direito à proteção da FDMA, uma vez terem adquirido um pomar de aproximadamente 2,5 hectares, no qual trabalhavam ativamente, já tendo inclusive realizado duas colheitas. A discussão ocorreu tendo em vista que Kenneth era operador de máquinas e Gwenith, contadora e administradora.

Sobre o tema, a Suprema Corte da Colúmbia Britânica entendeu que a FDMA é uma lei de natureza corretiva, destinando-se a fornecer aos agricultores um short standstill para dar a oportunidade de demonstrar viabilidade de cumprimento das obrigações assumidas. E como tal, deveria ser interpretada de forma justa, ampla e liberal, que melhor garantisse a consecução de seus objetivos e, na hipótese de dúvida, o caso teria que ser resolvido em favor dos devedores que afirmaram ser agricultores.

Registrou ainda que, a definição de “agricultor” contida na FDMA, é no sentido de que a atividade agrícola seja desenvolvida para “fins comerciais”. Contudo, a agricultura não precisava ser a única ou principal fonte de renda, não exigindo que o agricultor demonstrasse a obtenção de lucro, ou mesmo de renda. Ao final, concluiu pela aplicação da FDMA, mencionado que, embora o fato do campo estar em nome de uma empresa, não vislumbrou qualquer óbice, eis que quem realmente trabalhava na terra era o casal Harding.

No âmbito canadense, portanto, o produtor rural, possui tratamento diferenciado para a reorganização das dívidas, inexistindo qualquer impeditivo legal quanto à legitimidade para postulá-la.

Conclusão

A presente análise dos sistemas jurídicos selecionados fornece uma visão, ainda que breve, do funcionamento da recuperação judicial do homem do campo, em países que competem economicamente com o Brasil no âmbito do agronegócio. Assim, se pode constatar que a barreira burocrática já foi superada, com respectiva desregulamentação do setor que possui fundamental importância na economia de qualquer nação.

Segundo a FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura, o Brasil está para se tornar o maior fornecedor capaz de satisfazer a demanda mundial adicional de commodities, proveniente principalmente da Ásia. Além do mais, atualmente, a França é considerada a maior produtora agrícola da União Europeia, seguida pela Alemanha. Já a nação Norte-americana e o Canadá se destacam por ocuparem o 1o e 5o lugares no ranking de maiores exportadores de produtos agrícolas do mundo.

Podemos afirmar que, o produtor rural brasileiro além de enfrentar o árduo trabalho no campo, se depara com uma realidade de profunda desigualdade em termos de amparo legal, haja vista que os agricultores das maiores economias do mundo, concorrentes diretos no setor agrícola, encontram-se em disparada vantagem.

Ademais, tanto os EUA, França, Alemanha e Canadá, são países que adotam políticas protetivas ao referido setor, com a oferta de pesados subsídios, visando promover uma feroz concorrência em face dos demais países produtores.

Igualmente, outra questão que possui fundamental importância neste quadro é a ocorrência do fenômeno da mudança climática. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), criado pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, concluiu que o aquecimento global é fato e que uma das suas principais consequências é a estiagem ou inundações, a serem observados em várias regiões do Planeta.

Notadamente, há muito tempo o Brasil tem sofrido com tal fenômeno, que castiga as mais variadas culturas de plantio e, por conseguinte, o homem do campo e em uma escala maior, a economia do país.

Por tal razão, a recuperação judicial de forma desregulamentada, em observância aos ditames dos artigos 970 e 971, ambos do Código Civil, é um tratamento que o produtor rural e o agronegócio de forma geral, perseguem de forma obstinada nos tempos atuais, a fim de evitar o colapso do setor, situação esta que seria desastrosa para o país.

Obviamente, no julgamento ocorrido no dia 05 de novembro do presente ano, a Quarta Turma fixou importante precedente, pois ao interpretar a legislação brasileira de forma sistemática, o ministro Luis Felipe Salomão pontuou em seu voto que a norma deve se atentar para a finalidade de organizar a atividade, não apenas para proporcionar ao empresário o acesso ao lucro, assegurando também a distribuição de riqueza, a manutenção de empregos, a produção e circulação de mercadorias, bens e serviços, a geração de tributos, sendo que ao final referiu que:

i) o produtor rural que exerce atividade empresária é sujeito de direito da recuperação judicial;
ii) é condição para o requerimento da recuperação judicial pelo produtor rural a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, observadas as formalidades do artigo 968 e parágrafos do Código Civil;
iii) a aprovação do requerimento de recuperação judicial pelo produtor rural está condicionada à comprovação de exercício da atividade rural há mais de dois anos, por quaisquer formas admitidas em lei e
iv) comprovado o exercício da atividade pelo prazo mínimo exigido pelo art. 48 (lei 11.101/05), sujeitam-se à recuperação os créditos constituídos, que decorram de atividades empresariais.

Na sequência, o ministro Raul Araújo, que havia inaugurado a divergência, reiterou o seu entendimento de que a legislação brasileira deu tratamento diferenciado para o empreendedor rural, que pode ser um produtor rural regido pelo Código Civil ou um empresário rural regido pelo regime empresarial, mas em ambos os casos está em situação regular.

Por sua vez, coube ao ministro Antônio Carlos Ferreira o desempate do julgamento, votando a favor da divergência inaugurada pelo ministro Raul Araújo.

Vislumbra-se que, na espécie, que o Superior Tribunal de Justiça extraiu a melhor interpretação da legislação nacional acerca do tema, possibilitando ao agricultor brasileiro maior segurança jurídica para fazer frente a uma ordem econômica concorrente que há muito já pacificou o tema da recuperação judicial do produtor rural, tanto na qualidade de pessoa natural como jurídica.

NOTAS__________________________

1 Art. 48 da Lei 11.101/2005

2 Compreende-se aqui como principal profissão a atividade rural, seja extrativista, agrícola, pecuária ou agroindustrial.

3 Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/eventos/jornadas>. Acesso em 16 set. 2019.

4 Convém fazer um breve esclarecimento a respeito do U. S. Code, ele é uma compilação e codificação de Leis Federais dos Estados Unidos e, em razão do sistema federativo americano, a sua aplicação é subsidiária às Leis Estaduais.

5 É comum traduzirem a palavra bankruptcy como falência, mas no nosso entendimento a mais adequada é insolvência.

6 Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/uscode/text/11>. Acesso em 16 set. 2019.

7 Disponível em: <https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-bill/2336/actions>. Acesso em 23 set. 2019.

8 Com relação aos Municípios as regras são totalmente distintas, eis que não é possível penhorar ou sequestrar a renda ou a propriedade do ente.

9 Plano de recuperação do trabalhador assalariado.

10 Disponível em: <https://www.berlin.de/gerichte/amtsgericht-charlottenburg/das-gericht/zustaendigkeiten/insolvenzgericht>. Acesso em 20 set. 2019.

11 INSOL International – International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals. Claims Presentation ad Resolution in Insolvency Proceedinds. set. 2008. p. 63.

12 Exemplo de espécies de sociedades empresarias germânicas. Tradução respectiva: sociedade de responsabilidade limitada, empresa pública, cooperativas, associações, etc.

13 Disponível em: <https://www.heckmann.net/insolvenzverfahren-bei-selbststaendigen/#unterschiede>. Acesso em 30 set. 2019.

14 BERGER, Dora. A insolvência no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 2001, p. 84.

15 Em linhas gerais equivale a sanção, prevista no processo legislativo brasileiro.

16 Disponível em: <https://laws-lois.justice.gc.ca/PDF/F-2.27.pdf>. Acesso em 02 out 2019.

17 Disponível em: <http://www.fao.org/3/I9542EN/i9542en.pdf >. Acesso em 10 out. 2019.

18 Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/mudanca-climatica/>. Acesso em 16 set. 2019.

 

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