O modelo de financiamento eleitoral e sua legitimidade constitucional

O modelo de financiamento eleitoral e sua legitimidade constitucional

O modelo de financiamento eleitoral e sua legitimidade constitucional

As democracias maduras se caracterizam por um conjunto de práticas e valores aos quais se confere projeção institucional. O resultado dessa conformação se expressa num modelo de organização jurídico-política de Estado que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito. Por sua vez, compõe o núcleo desse modelo o princípio democrático e todos os direitos e liberdades que dele decorrem, sendo atribuído papel essencial à liberdade de voto do cidadão no processo eleitoral.

A liberdade de voto do eleitor deve se fazer presente em todo processo eleitoral, concretizando-se tanto na liberdade de convencimento e informação por parte do eleitor como na liberdade de apresentação da candidatura [1]. Assim, a formação da vontade política genuína exige a exclusão de todos os tipos de constrangimento e pressões que possam, de fora, impor-se ilegitimamente tanto aos eleitores quanto aos candidatos durante, e após, o período de campanha.

Nesse contexto ganha relevância o debate acerca do modelo de financiamento das campanhas que, em última instância, representa as condições materiais que proporcionam o exercício da atividade democrática pelos que almejam um cargo eletivo. Nas sociedades complexas a arrecadação de recursos pelos candidatos é importante porque propicia a estrutura de campanha necessária para projetar a plataforma da candidatura por diferentes meios, visando atingir os diversos grupos sociais, o que pode influenciar decisivamente no resultado eleitoral final [2].

Por isso, é latente a questão sobre o modo como as campanhas eleitorais são financiadas, desde os sujeitos interessados até os valores doados e arrecadados. A controvérsia reside na legitimidade e constitucionalidade da normativa infraconstitucional sobre o assunto e o seu efetivo cumprimento [3]. É na legislação infraconstitucional que se definem os mecanismos de angariação, limitação e controle dos recursos utilizados para financiar as campanhas eleitorais, sendo imperativo que respeitem o modelo democrático expresso na Carta Constitucional.

A ADI 4.565, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, tratou de enfrentar o tema por meio da tentativa de declarar inconstitucionais os artigos 23, parágrafo 1º, incisos I e II; 24 e 81, caput e parágrafo 1º, da Lei das Eleições, e dos artigos 31; 38, inciso III; 39, caput e parágrafo 5º, da Lei dos Partidos Políticos, todos referentes ao modelo de financiamento que prevalecia até o momento.

A OAB fundamentou o pleito nos vícios do processo eleitoral decorrentes do modo como se exercia o financiamento das campanhas por pessoas jurídicas e da oportunidade conferida aos cidadãos mais ricos de financiar a própria campanha sem limites. Sustentou que o modelo permissivo a estas práticas gera exacerbada dependência da política em relação ao poder econômico, ocasionando severa assimetria de recursos e, consequentemente, de possibilidade de êxito, entre aqueles que dispõem de vultosas quantias financeiras para aplicar na estrutura de campanha e os demais que não possuem.

O substrato constitucional da argumentação consistiu na vulneração, por parte desse modelo de financiamento, de quatro princípios constitucionais: princípio da isonomia; princípio democrático; princípio republicano; e princípio da proporcionalidade, em sua dimensão de vedação à proteção insuficiente. Esses princípios compõe o núcleo axiológico indispensável da Carta Magna, revelando a importância da discussão nos termos propostos pela OAB.

Alegou-se que a incidência das normas atacadas desvirtuava o sentido próprio da atividade política num Estado que se pretenda Democrático, visto que permitiam uma influência desproporcional do poder econômico no pleito eleitoral em favor daqueles com maior acesso a recursos materiais. Seria a primazia dos interesses do capital em detrimento dos interesses da sociedade civil organizada, resultando na dominância de interesses economicamente hegemônicos primeiramente na arena eleitoral e, posteriormente, no exercício das funções políticas e administrativas por aqueles que foram eleitos.

A entidade dos advogados, intentando conformar o sistema de financiamento aos ditames essenciais da Constituição, possuía dois objetivos: (i) enquadrar as doações eleitorais por parte de pessoas jurídicas de acordo com os princípios fundamentais; e (ii) o estabelecimento de um limite igualitário para o financiamento por pessoas naturais, não fundamentado apenas no critério de renda. O processo também contou com contribuições de órgãos do poder executivo [4], legislativo [5], do Ministério Público Federal [6], e da sociedade civil [7].

O tribunal, por maioria, acompanhou o voto do Ministro Relator Luiz Fux e declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas diretamente aos candidatos, mantendo a lei em vigor quanto à doação por pessoas físicas. O ministro iniciou seu voto atentando para a necessidade de uma reforma política, comandado pelo Legislativo, que aproxime a sociedade civil da classe política a partir da correção de patologias crônicas entranhadas na democracia brasileira. Um dos pontos centrais dessa reforma seria o financiamento, tendo em vista que as eleições no Brasil tem um custo desproporcional em relação ao resto das democracias maduras.

Rejeitadas as preliminares, observando-se a possibilidade jurídica de a corte enfrentar o pleito com atenção ao princípio da separação de poderes, o ministro assentou que o STF possui espaço legítimo para apreciar temas que atingem o núcleo do processo democrático. Defendeu a existência de hipóteses em que se exige postura mais incisiva da Suprema Corte, de modo que o Tribunal pode agir para otimizar e aperfeiçoar o processo democrático quando diagnosticado o inadequado funcionamento das instituições no que chamou de “modelagem institucional no Estado Democrático” [8]. Essa intervenção também é legítima quando se averigua a realidade institucional e se percebe que os agentes responsáveis por uma reforma política referente ao modelo de financiamento por ele foram beneficiados em campanhas anteriores, não havendo incentivos ao abandono do status quo.

As matérias intimamente ligadas ao processo eleitoral exigiriam postura mais expansiva e particularista do STF, agente em uma posição objetivamente neutra, garantido a higidez da democracia. Destaca-se que a ideia de que o sistema político precisava de um conserto por um sujeito distante do processo permeou todos os votos que formaram a maioria.

De acordo com o relator, citando Robert Alexy, a Constituição estabelece uma ordem-moldura na qual o legislador tem liberdade de atuação, cabendo, quando extrapolada essa ordem, a intervenção da corte constitucional. O modelo então vigente para doação por pessoas jurídicas extravasaria essa ordem na medida em que encarece demasiadamente as campanhas, vulnera a isonomia, além de as empresas não constituírem expressão de apoio político, pois era frequente que realizassem doações independente do viés ideológico do candidato, chegando a doar para todos aqueles que considerava viáveis.

Enfim, a influência das empresas no modo com se desenhava consistiria em prática sucedânea ao coronelismo da Velha República que, por atingir o núcleo do princípio democrático, deve ser contida pela atuação jurisdicional. Ademais, o modelo no qual os candidatos recebem recursos de pessoas físicas promove aproximação do cidadão com o processo eleitoral.

Outros votos realizaram apanhado histórico do modelo de financiamento brasileiro e apontaram a dependência entre candidatos e seus financiadores como fator de corrosão da legitimidade da democracia representativa. Nesse ponto é relevante salientar que para o Ministro Luis Roberto Barroso as doações empresariais poderiam ser constitucionais, caso inseridas em uma realidade diferente. Também se afirmou, no voto do Ministro Dias Toffoli, que permitir a doação por empresas, de acordo com a legislação então em vigor, implicaria em violação ao princípio da soberania popular, já que as pessoas jurídicas não possuem direitos políticos e sua participação no processo eleitoral não é prevista pela Constituição.

A minoria que entendeu pela constitucionalidade das contribuições por pessoas jurídicas teve a divergência inaugurada pelo voto do Ministro Teori Zavascki. Entendeu o ministro que a Constituição Federal elenca como parâmetros de combate à influência econômica abusiva nos pleitos eleitorais somente a normalidade e legitimidade das eleições, não havendo outras limitações, inclusive porque as pessoas jurídicas desempenham papel importante na sociedade e são criadas para satisfazer os interesses e privilegiar os valores das pessoas naturais por trás delas.

Ainda, na medida em que pessoas naturais desabilitadas para votar podem contribuir financeiramente para partidos e campanhas, não deve haver relação entre a ausência de capacidade de voto pelas pessoas jurídicas e a habilitação para contribuir. Observando-se o critério da legitimidade das eleições, o que deve ser repreendido é a abusividade existente nas doações, provenientes de qualquer pessoa. Concluiu que a vedação não soluciona o problema do abuso de poder econômico nas eleições, visto que a abusividade também pode ocorrer por meio de doação de pessoas naturais.

No mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes asseverou que não há vedação constitucional expressa à doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais e, caso proibida, resultaria no asfixiamento financeiro dos partidos, até os que não se beneficiariam de esquemas de corrupção, representando a criminalização do processo político-eleitoral e incentivo à prática do crime de lavagem do dinheiro. Também acompanhou o dissenso o Ministro Celso de Mello, que destacou não haver transgressão à Constituição Federal caso se institucionalize um sistema de efetivo controle que impeça e neutralize o abuso de poder econômico, porquanto o que a Constituição não tolera são os excessos do regular exercício do direito de contribuição por pessoas naturais ou jurídicas.

Em suma, todos os ministros concordaram que a Carta Constitucional de 1988 veda a influência excessiva do poder econômico no processo eleitoral, mas, para alguns, isto deve ocorrer por meio de normatizações e do processo legislativo, enquanto a maioria considerou o modelo vigente para doação por empresas um elemento definitivo para contribuir com a defasagem democrática do Brasil.

[1] GUEDES, Néviton. Comentário ao artigo 14, caput. In: CANOTILHO, J.J Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lênio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:Saraiva/Almedina, 2013, p. 665.

[2] DECOMAIN, Pedro Roberto. Financiamento Público de Campanhas Eleitorais: influência do Poder Econômico, o fundo especial de financiamento de campanha (FEPC), instituído pela Lei nº 13.487, de 2017, limites máximos de gastos em campanhas eleitorais e outros temas correlatos. In: FUX, Luiz; Pereira, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura. (Coord.) PECCININ, Luiz Eduardo. (Org.) Financiamento e Prestação de Contas. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

[3] MENDES, Antônio Carlos; Aspectos da ação de impugnação de mandato eletivo. In: VELLOSO, Carlos Mário da Silva; ROCHA, Carmém Lúcia Antunes. Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. P. p.338 – 339.

[4] A Presidência da República, por meio da Consultoria-Geral do Ministério da Justiça e Consultoria-Geral da União, emitiu pareceres favoráveis à doação eleitoral por parte das pessoas jurídicas. O advogado-Geral da União pronunciou-se pela improcedência dos pedidos deduzidos na ADI.

[5] A Presidência da Câmara dos Deputados e a Presidência do Senado Federal opinaram pela constitucionalidade das normas legais adversadas.

[6] O MPF emitiu parecer opinando pela procedência do pedido.

[7] Na qualidade de amici curiae, houve manifestação da Secretaria Executiva do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção EleiEleitoral – SE-MCCE, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados – PSTU, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e, em petição conjunta, da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – CLÍNICA UERJ DIREITOS e do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS.

[8] Conforme STRUCHINER, Noel. Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade (contingente) do formalismo jurídico). In.:SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 540-544

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