Jurisdição constitucional: a aproximação dos modelos americano e europeu

Jurisdição constitucional: a aproximação dos modelos americano e europeu

Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Em um primeiro momento, nesta coluna, destacou-se a importância de decisões judiciais como ferramenta de mudança constitucional. Após, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal foi objeto de análise. Em razão de sua responsabilidade como guarda da constituição, o Supremo Tribunal Federal tornou-se protagonista de diversas mudanças na vida social, política e cultura brasileira. Cumpre, antes da abordagem pontual das decisões do Supremo, delinear o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, cuja particularidade está na combinação entre as tradições norte-americana e europeia do judicial review.

Símbolo crasso do constitucionalismo liberal que emergiu das revoluções burguesas do século XVIII, a constituição dos Estados Unidos exerceu grande influência, principalmente na América, na qualidade de expressão e de cristalização do poder constituinte do povo em um documento escrito, o que lhe conferia um status supralegal per se. Por ocasião do julgamento de Marbury v. Madison, consolidou-se o modelo americano de controle de constitucionalidade, que atribui à Suprema Corte dos Estados Unidos a competência de interpretar as normas jurídicas à luz da constituição a partir de um caso concreto, qual seja, o direito de William Marbury a tomar posse na magistratura, e sem eficácia erga omnes, ou seja, com efeitos restritos às partes.

O modelo de controle de constitucionalidade norte-americano consolidou-se como incidental e concreto, ou seja, tribunais estaduais e federais de qualquer hierarquia são responsáveis por aferir a constitucionalidade da lei. Se julgar inconstitucional a lei, poderá afastar sua incidência no caso concreto, com efeitos tão somente intra partes. Apenas em última instância e não sem diversos filtros, o Tribunal Constitucional pronuncia-se sobre a lisura da lei, proferindo decisão que orientará aos demais juízos na resolução de controvérsias semelhantes — em outro termo, proferindo uma stare decisis.

Assim como a constituição norte-americana, cujo texto não estipula expressamente o controle de constitucionalidade, a primeira constituição brasileira não previu forma alguma de controle de constitucionalidade, muito em função da existência do “Poder Moderador” da Constituição Imperial. Em 1891, reconhecendo a realidade existente desde a edição do Decreto 848/90, que instituiu expressamente, entre as competências do Supremo Tribunal Federal, a avaliação da validade de norma ou ato à luz da Constituição, a primeira constituição republicana acolheu o controle difuso e incidental, sob a influência da Constituição dos Estados Unidos.

Com 1891, veio um modelo de Justiça dual, que permitia tanto à Justiça Federal quanto à Justiça estadual declarar incidentalmente a inconstitucionalidade das leis, em suas respectivas esferas de atuação, quando suscitada a questão nos casos concretos. Os efeitos das decisões somente seriam oponíveis intra partes, o que permitia interpretações distintas e até díspares sobre uma mesma lei. A codificação do Direito brasileiro, herança da tradição jurídica do civil law, foi em parte o motivo da não recepção do precedente obrigatório na prática jurídica nacional.

A Constituição brasileira de 1934 preservou o sistema incidental e difuso norte-americano, mas introduziu mudanças significativas, como a possibilidade de o Senado Federal suspender total ou parcialmente a execução de lei, ato, deliberação ou regulamento considerado inconstitucional pelo Poder Judiciário, semelhante à compreensão americana do stare decisis. Outra novidade trazida pela Carta de 1934 foi a cláusula de reserva de Plenário, que condiciona a declaração de inconstitucionalidade pelo tribunal à maioria absoluta de seus membros, a fim de evitar as decisões monocráticas do relator, e a representação interventiva, uma espécie de antecessora da ação direta de inconstitucionalidade, cujo legitimado era unicamente o procurador-geral da República e cujo objetivo era proteger os princípios constitucionais.

Após a curta vida da Constituição de 1934, foi promulgada a Constituição do Estado Novo, cuja função era apenas assegurar uma ilusória percepção de juridicidade aos atos ditatoriais. Com o término da ditadura e a processo de democratização, a nova Constituição de 1946 protegeu as garantias individuais, restaurou o bicameralismo e reinstituiu o cargo de vice-presidente. Porém, no tocante ao controle de constitucionalidade, manteve o modelo da Constituição de 1934.

Com o golpe militar, a constituição voltou a possuir papel primordialmente figurativo. Todavia, ocorreu uma profunda mudança no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que gradualmente rumou à concentração a partir da Emenda Constitucional 16/65, responsável pela criação da representação de inconstitucionalidade. Interposta pelo procurador-geral da República contra lei ou ato normativo federal ou estadual, a representação levava ao Supremo Tribunal Federal questões de constitucionalidade em tese, não mais in casu. Essa mudança de paradigma deveu-se à necessidade de agilidade e presteza no Poder Judiciário, não a qualquer aspiração por proteção da democracia. A Emenda Constitucional 16/65 também autorizava o controle pelos tribunais estaduais de lei ou ato municipal frente à constituição estadual.

Em agosto de 1978, foi introduzida importante modificação no regimento interno da Supremo Tribunal Federal. A Emenda Regimental 7 concedia “força vinculante” às decisões do STF a fim de obrigar suas interpretações constitucionais às instâncias inferiores, prevenindo assim decisões conflitantes. Ademais, a emenda incluía às competências do tribunal uma “função consultiva”, que foi pouco usada devido à exclusividade do procurador-geral da República em seu manejo.

Ao tempo em que a Constituição preservou o controle difuso e concreto inspirado no modelo norte-americano, aprofundou o modelo concentrado e abstrato de inspiração continental, cuja raiz remete à tradição romano-germânica do civil law, calcada na ideia do código. Hans Kelsen, principal teórico dessa modalidade de controle, defendia a criação de tribunal exclusivamente constitucional, cuja função seria anular com efeitos erga omnes as leis e os atos contrários à constituição em um exercício abstrato de compatibilidade, independente de situação concreta.

A nova Constituição introduziu novas ações, instituindo a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, e ampliou os agentes legitimados, franqueando acesso ao Supremo ao presidente da República, às Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, à Mesa da Assembleia Legislativa e à Mesa da Câmara Distrital, ao governador do estado e do Distrito Federal, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a todo partido político com representação parlamentar e à confederação sindical e entidade de classe de âmbito nacional.

Ainda recepcionando construção jurisprudencial do próprio STF, a Constituição incorporou o instituto da reclamação constitucional no artigo 102, inciso I, alínea “a” do texto, com o fito de garantir a preservação da competência do Supremo quando qualquer tribunal inferior usurpar suas competências ou contrariar suas decisões. Com isso, trazia-se um primeiro mecanismo de uniformização da jurisprudência.

O processo de evolução da preponderância do controle concentrado passou por importante momento no ano de 1993. A ação declaratória de constitucionalidade foi criada com a Emenda 3 e, posteriormente, regulamentada pela Lei 9.868/99, trazendo consigo mecanismo para mitigar a inconsistência jurisprudencial no que permite provocar o Supremo Tribunal Federal a decidir-se sobre “a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação de disposição objeto da ação declaratória”. À época, repudiava-se a proposta sob o fundamento de violação ao contraditório, à garantia de acesso à Justiça e à separação dos poderes. Hoje, a importância das súmulas é tamanha que é admitida a interposição de reclamação diretamente no Supremo para impugnar ato administrativo ou decisão judicial que divirja ou contrarie seu enunciado. Se for o caso de uma lei fazê-lo, caberá ação direta de inconstitucionalidade.

Portanto, as súmulas vinculantes contribuem para o “trânsito do modelo difuso-concreto para o concentrado-abstrato”, vez que incorpora as decisões judiciais do controle difuso e converte ao controle concentrado de constitucionalidade, passando por cima do procedimento previsto no artigo 52, alínea “f”, inciso X, da Constituição, que estabelece ser competência privativa do Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, trata-se de caso de mutação constitucional “em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988”[1].

Foram igualmente relevantes, nesse processo de concentração, as mudanças promovidas pela Reforma do Judiciário. A Emenda Constitucional 45/04, além de criar o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, ampliou o elenco de legitimados para a proposição da ADC, equiparando aos autorizados da ADI, conferiu efeito vinculante às súmulas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e instituiu a repercussão geral como requisito a ser demonstrado na propositura de Recurso Extraordinário, sob pena de inadmissibilidade.

Ainda que em nível infraconstitucional, percebe-se o fortalecimento da função cumprida pela jurisprudência na garantia de segurança e de previsibilidade na esfera constitucional. Com o novo Código de Processo Civil, é instalado um sistema vertical de stare decisis com a previsão de que todas as súmulas, não somente as súmulas vinculantes, e demais precedentes serão de observância obrigatória por todos os magistrados brasileiros.

Ao longo desse processo, percebe-se um itinerário curioso na construção do modelo brasileiro, que perpetua o controle difuso e incidental, mas aprofunda o concentrado e abstrato valendo-se até mesmo de mecanismos próprios do common law, como a stare decisis. Chegou-se a um modelo de controle de constitucionalidade marcadamente concentrado e abstrato que, a fim de valorizar o papel do Tribunal Constitucional como uma tribunal de precedentes, faz utilização de mecanismos típicos do controle incidental e difuso. Unindo as tradições, a Justiça constitucional brasileira agrega experiências para construir um modelo especial que amplia os poderes do Tribunal Constitucional, cujas decisões devem ser tomadas com responsabilidade.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional – Parte II. Revista JC, n. 52, nov. 2004. Disponível em: <http://www.editorajc.com.br/2004/11/o-papel-do-senado-federal-no-controle-de-constitucionalidade-um-caso-classico-de-mutacao-constitucional-2/>. Acesso em 18 de março de 2016
Fonte: Portal Conjur

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