O Sistema de Justiça Multiportas no Novo CPC

O Sistema de Justiça Multiportas no Novo CPC

O Sistema de Justiça Multiportas no Novo CPC

A adequação do sistema processual brasileiro aos princípios e garantias da Constituição Cidadã é, certamente, uma das mais relevantes inovações do Código de Processo Civil (CPC) de 2015. Buscando harmonizar-se às normas constitucionais – sobretudo aos princípios do amplo acesso à justiça, da razoável duração do processo, da eficiência e do contraditório –, o novo CPC alinha-se ao moderno conceito de Justiça Multiportas. Para além da via tradicional do processo judicial, o diploma estimula a utilização de métodos de solução consensual de conflitos, como a conciliação e a mediação, bem como reconhece a arbitragem como método válido de jurisdição.

A expressão “Justiça Multiportas” foi cunhada pelo professor Frank Sander, da Faculdade de Direito de Harvard. Opondo-se ao sistema clássico, que antevê a atividade jurisdicional estatal como a única capaz de solver conflitos, o Sistema de Justiça Multiportas remete a uma estruturação que conta com diferentes mecanismos de tutela de direitos, sendo cada método adequado para determinado tipo de disputa. A jurisdição estatal, nessa senda, passa a ser apenas mais uma dentre as diversas técnicas disponíveis. Ressalta-se que optar pelo caminho do Sistema de Justiça Multiportas não é uma peculiaridade do Estado brasileiro. Após a Segunda Guerra Mundial, diversos países têm atualizado seus sistemas jurídicos nesse sentido, objetivando maior respeito e proteção aos direitos humanos, individuais e coletivos.

Conforme leciona Leonardo Cunha, “a expressão multiportas decorre de uma metáfora: seria como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação, ou da arbitragem, ou da própria justiça estatal”1. Diferenciando-se do modelo de justiça tradicional, que era autocentrado e interventivo, o modelo multiportas considera também as soluções extrajudiciais, sejam elas: autocompositivas, por meio da mediação, conciliação ou outros métodos de solução consensual de litígios, a exemplo da negociação direta; ou heterocompositivas, como é o caso da arbitragem, apresentada pelo CPC/2015 como uma jurisdição extraestatal2.“O Judiciário deixa de ser um lugar de julgamento apenas para ser um local de resolução de disputas. Trata-se de uma importante mudança paradigmática. Não basta que o caso seja julgado; é preciso que seja conferida uma solução adequada que faça com que as partes saiam satisfeitas com o resultado”3.

Objetivando maior respeito e asilo aos direitos individuais e coletivos, o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal4 prescreve o amplo acesso à justiça considerando tanto a via repressiva, na apreciação de lesão a direito, quanto a via preventiva, que busca proteção diante de ameaça. O Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive, “tem reconhecido, em obediência ao inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República, a desnecessidade de prévio cumprimento de requisitos desproporcionais ou inviabilizadores da submissão de pleito ao Poder Judiciário”5. Se, por um lado, a inafastabilidade da jurisdição trouxe o benefício do amplo acesso à justiça, por outro, desencadeou um número desenfreado de demandas judiciais, a ponto de muitas vezes inviabilizar sua resolução em tempo razoável.

Sublinha-se, como um paradigma no enfrentamento dessa situação, o advento da Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade”6. É a partir da referida resolução que efetivamente se inicia, no Brasil, a implementação do Sistema de Justiça Multiportas para a solução de litígios. Veja-se que a aludida normativa já previa, inclusive, a criação de unidades do Poder Judiciário responsáveis pela realização e gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação7.

Nessa circunstância, o caput8 do artigo 3º do Código de Processo Civil de 2015 vem reforçar a garantia constitucional de acesso ao Poder Judiciário sempre que houver lesão ou ameaça a direito. Os parágrafos desse dispositivo, por sua vez, além de reiterar a permissão legal de arbitragem9, já prevista anteriormente na Lei nº 8.987/199510, dispõe que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” (§2º do art. 3º, CPC/2015) e que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” (§3º do art. 3º, CPC/2015).

A leitura das referidas normas nos permite extrair, do ordenamento processual civil brasileiro, a adoção de um sistema de justiça multiportas, que objetiva garantir o devido processo legal enquanto assegura direitos fundamentais, ao primar pelo equilíbrio entre as partes e por uma tutela constitucionalmente adequada. O CPC/2015 inova, em seu artigo 33411, quando comparado ao CPC/1973, para incentivar ainda mais essa postura pacificadora e cooperativa, ao prever a designação obrigatória de audiência de conciliação e mediação.

Outra significativa inovação instituída pelo CPC/2015 consiste na criação de câmaras privadas de mediação e conciliação (art. 16712). Trata-se de empresas privadas adequadamente capacitadas que, junto a mediadores e conciliadores, poderão operar, em caráter preventivo, judicial e extrajudicial, para a pacificação de conflitos e litígios. Portanto, evidencia-se mais uma vez que, para além da jurisdição estatal, o atual sistema judiciário brasileiro pode contar com modalidades das chamadas ADR e ODR.

ADR é a sigla para Alternative Dispute Resolution, também apelidada de “meios alternativos de resolução de controvérsias” (MASCs) ou “meios extrajudiciais de resolução de controvérsias” (MESCs). Todos esses termos remetem aos métodos de negociação, mediação, conciliação e arbitragem. Destaca-se que os meios considerados mais adequados para a solução de demandas podem ser utilizados em qualquer momento, dependem tão somente da vontade das partes, seus benefícios podem ser facilmente percebidos: há uma patente economia de tempo e custas processuais; os envolvidos participam ativamente, assumindo protagonismo da solução do conflito e responsabilizando-se pelos resultados; a solução pode ser criativa e flexível para adaptar-se às necessidades das partes, obtendo-se resultados amplamente favoráveis e duradouros.

Por seu turno, ODR significa Online Dispute Resolution e se refere aos mesmos métodos de resolução de conflitos citados em relação à ADR, a diferença é que a modalidade ODR se dá por meio das plataformas digitais. Nesse sentido, assevera Daniel Arbix que a resolução de controvérsias via ODR não se limita a substituir os canais de comunicação tradicionais pelos ambientes virtuais, até porque os “mecanismos de ODR são uma ‘nova porta’ para solucionar conflitos que talvez não possam ser dirimidos por mecanismos tradicionais de resolução de controvérsias, inclusive os de ADR”13.

Dentre os óbices para uma aplicação mais abrangente do modelo de justiça multiportas está a persistência de falsas premissas, como: i) “com esse sistema os advogados serão prejudicados”; ii) “as partes terão suas demandas tramitando em extensões desconhecidas ou incertas”; iii) “esse sistema é apresentado porque o Judiciário não quer ter mais responsabilidades”. Nenhuma dessas proposições, contudo, condizem à realidade do sistema jurídico nacional.

A verdade é que, solucionar um conflito por outras vias que não perpassem necessariamente pela tutela jurisdicional do Estado apresenta, seguramente, mais vantagens que prejuízos. Os aparatos extraestatais e não adversariais podem proporcionar uma resolução mais rápida da controvérsia, gerando a satisfação das partes e possibilitando maiores chances de arranjo social entre os envolvidos no conflito. Tem-se, ainda, o que podemos chamar de efeitos reflexos que seriam, por exemplo, a redução do número de recursos e a simplificação da execução, que pode ocorrer com o adimplemento espontâneo. Por fim, num cenário em que o modelo de justiça multiportas seja amplamente viabilizado, atingindo satisfatoriamente o cidadão e as pessoas jurídicas em uma cultura de cooperação recíproca, isso resultará na redução da quantidade de processos judiciais.

O elevado número de processos, que segue em escala crescente, sobrecarrega a capacidade de julgamento dos tribunais brasileiros. Conta-se mais de 100 milhões de ações judiciais em tramitação e, por essa razão, o Poder Judiciário se mostra ineficiente e extremamente moroso. A advocacia, conforme consagrou a Constituição Federal14, consiste em função indispensável para a administração da justiça, portanto, ainda que a porta mais adequada para a resolução de determinado litígio seja uma das opções extrajudiciais, a função do advogado segue sendo essencial para que as partes alcancem os melhores resultados diante de seus interesses.

A propósito, harmonizando-se ao atual Sistema de Justiça Multiportas, o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil estabelece que o patrono tem o dever de estimular a conciliação entre os jurisdicionados, buscando, sempre que possível, prevenir a instauração do processo. O art. 2º assim dispõe: “o advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: (…) VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios.” Além disso, reforçando a relevância da atuação do advogado, o Código de Ética assegura que o valor dos honorários do profissional não poderá ser diferente em virtude do uso de métodos adequados para a resolução de conflitos15.

Não apenas a advocacia, mas também os Defensores Públicos e o Ministério Público devem estimular os métodos consensuais de resolução de conflitos, posto que tais mecanismos têm apresentado respostas que, além de céleres, são mais eficientes, objetivas, simples e menos custosas – tanto para as partes como para o Sistema Judiciário como um todo.

Mesmo diante dessa abertura, o Poder Judiciário é e seguirá sendo o guardião dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal. Seu relevante papel em uma Democracia Constitucional é incontestável. A jurisdição estatal, pois, deve ser mantida ao alcance do cidadão, se e quando for a porta mais adequada.

Amparado pelo CPC/2015, o Sistema Multiportas se apresenta como uma solução possível e eficaz para efetivar o acesso à justiça. Na medida em que os litigantes são menos adversários e mais cooperativos, a solução do conflito se apresenta com ganhos mútuos que podem até ultrapassar as partes envolvidas e ocasionar o fortalecimento da cidadania através da promoção da paz social, da justiça e da solidariedade, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

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1 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 637.

2 CPC/2015. “Art. 337. (…) §6º. A ausência de alegação da existência de convenção de arbitragem, na forma prevista neste Capítulo, implica aceitação da jurisdição estatal e renúncia ao juízo arbitral.”

3 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 637.

4 Constituição Federal. “Art. 5º. (…) Inc. XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

5 Supremo Tribunal Federal. ADI nº 2.139/DF. Relatora a Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. DJ: 01.08.2018.

6 Resolução 125/2010 do CNJ. Art. 1º.

7 Resolução 125/2010 do CNJ. “Art. 8º. Os tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Centros ou Cejuscs), unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão. (Redação dada pela Emenda nº 2, de 08.03.16).”

8 CPC/2015. “Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.”

9 CPC/2015. “Art. 3º. (…) §1º. É permitida a arbitragem, na forma da lei.”

10 Lei nº 8.987/1995. “Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996. (Incluído pela Lei nº 11.196, de 2005).”

11 CPC/2015. “Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.”

12 CPC/2015. “Art. 167. Os conciliadores, os mediadores e as câmaras privadas de conciliação e mediação serão inscritos em cadastro nacional e em cadastro de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal, que manterá registro de profissionais habilitados, com indicação de sua área profissional.”

13 ARBIX, Daniel do Amaral. Resolução online de controvérsias – Tecnologias e jurisdições. Tese de doutorado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2015.

14 CF/1988. “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

15 Artigo 48, parágrafo 5º: “É vedada, em qualquer hipótese, a diminuição dos honorários contratados em decorrência da solução do litígio por qualquer mecanismo adequado de solução extrajudicial”.

Publicado originalmente em: https://m.migalhas.com.br/coluna/cpc-marcado/330271/o-sistema-de-justica-multiportas-no-novo-cpc

 

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