Contra todos os abusos

Contra todos os abusos

Contra todos os abusos

A lei 13.869/2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, entrou em vigor neste ano e trouxe consigo uma nova obrigação para os operadores do direito, que é se preparem para confrontar o seguinte problema: garantir a correta execução da norma, salutar à sociedade, sem gerar prejuízos à persecução penal.

Apesar de recente, esse tipo de regulamento é vinculado a uma tradição que remonta à Constituição do Império, de 1824. Nela já estavam delimitados, por exemplo, os limites à edição de medidas de restrição de liberdade. Apenas agora, no entanto, esses limites encontram seu marco legal apropriado.

A Carta outorgada por Dom Pedro 1º, em seu artigo 179º, inciso 8º, afirmava que “ninguém pode ser preso sem culpa formada”. O inciso 10 estabelecia os freios ao poder de prender alguém: “(…) a prisão não pode ser executada, senão por ordem escrita da autoridade legítima. Se esta for arbitrária, o juiz, que a deu, e quem a tiver requerido, serão punidos com as penas que a Lei determinar”.

Entre os aprimoramentos ao sistema de Justiça trazidos pela lei de abuso de autoridade estão a vedação das conduções coercitivas quando o investigado não tiver se recusado a comparecer à oitiva e a proibição da exibição do detento à curiosidade pública. Torna-se punível, ainda, a divulgação de trechos de gravação que não tenham relação com a prova, de forma a impedir a exposição da intimidade e da vida privada de acusados.

A lei supre também a lacuna que deixava em aberto a punição para quem violasse as prerrogativas da advocacia, que existem justamente para proteger o direito dos cidadãos de se apresentarem perante o Estado em pé de igualdade.

A lei contra o abuso de autoridade não deve, no entanto, ser uma intimidação à escorreita atuação de juízes, procuradores, delegados e demais autoridades que precisam lidar com garantias dos cidadãos e, dadas as contingências da função, trabalham mais expostos aos enquadramentos da lei.

O texto sancionado pelo presidente da República, ao caracterizar as hipóteses de abuso, traz, em si, o antídoto para indesejáveis exorbitâncias na aplicação. Importante ressalvar que a criminalização da violação das prerrogativas dos advogados alterou o Estatuto da Advocacia, acrescentando esse tipo penal. Deve ser aplicado, em relação a ele, os princípios e regras de interpretação próprios desse microssistema.

O preceito fundamental irrompe logo no artigo 1º da lei: a infração será constituída apenas se houver, pelo praticante da conduta, “finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou terceiro”.

Outra importante ressalva é a de que não existe o famigerado “crime de hermenêutica”: interpretações da lei ou avaliações de fatos e provas eventualmente revistas pelas instâncias superiores do Judiciário não configurarão abuso de autoridade.

E quem garantirá o emprego adequado do mandamento são os próprios magistrados: a eles competirá a decisão derradeira no caso de imputações. Como nossos juízes se provam, diariamente, capazes de julgar toda e qualquer violação em território nacional, também estarão habilitados a tratar dessa nova tipologia, conscientes de que a imposição de empecilhos aos excessos da autoridade representa um triunfo civilizatório.

Marcus Vinicius Furtado Coêlho

Advogado constitucionalista, é ex-presidente nacional da OAB (2013-2016)

Publicado originalmente no Portal Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/contra-todos-os-abusos.shtml

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