Supremo Tribunal Federal: de ilustre desconhecido a protagonista

Supremo Tribunal Federal: de ilustre desconhecido a protagonista

Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho

O Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional, tem sido protagonista de diversas mudanças na vida social, cultural e política nacional. Diversos foram os fatores que levaram a essa condição, sendo fundamental a técnica de controle de constitucionalidade que permite declarar inválida norma constitucional, fruto do poder constituinte derivado, que afronte as cláusulas pétreas.

Quais condições levaram o Supremo a deixar de ser o “outro desconhecido”, como assim foi denominado pelo então ministro Aliomar Baleeiro ao final de década de 1960, em diagnóstico sobre a ignorância da sociedade quanto ao papel cumprido pelo tribunal, para transformar-se no “supremo protagonista”, como denominado por Joaquim Falcão e Fabiana Luci ao chamarem atenção ao crescente interesse da população para com o Supremo?

É fato que o protagonismo do STF no enfrentamento e na resolução das questões mais sensíveis sobre a vida em sociedade deve-se a inúmeros fatores e explica-se sob diversos pontos de vista. Sob um viés psicanalítico, por exemplo, esse protagonismo é sintoma da centralização da consciência social na Justiça em contrapartida à eliminação das discussões e dos procedimentos necessários à construção política das normas e dos valores sociais, como Ingeborg Maus alerta ao tratar da transferência do superego da sociedade ao Judiciário[1].

Sob o enfoque da ciência política, a crescente presença do Poder Judiciário — e, sobretudo, do seu órgão de cúpula — é apenas consequência da juristocracia. Segundo Ran Hirschl, professor da Universidade de Toronto, trata-se do processo de transferência dos poderes das instituições representativas para as instâncias judiciais[2]. Ao cabo dessa transferência, que ocorreu em diversos países do globo sobretudo a partir do final do século passado, “dificilmente exista qualquer controvérsia moral ou política no mundo do novo constitucionalismo que — cedo ou tarde — se torne uma controvérsia jurídica”.

É certo que, dentre todos os textos da história constitucional brasileira, a Constituição de 1988 foi a que mais depositou confiança no papel a ser exercido pelo Direito e pelo Poder Judiciário na transformação da sociedade e do Estado — enfim, na transformação social do país. Nesse sentido, além de prever um extenso e fraterno catálogo de direitos fundamentais a serem efetivados por todos os poderes da República, o que incentiva o ativismo do Supremo Tribunal Federal, a Constituição Federal de 1988 instituiu novas ações, como a arguição de descumprimento de preceito fundamental — a ser acionada subsidiariamente à ação direta — e o mandado de injunção — a ser acionado para suprir ausência de norma regulamentadora de direito fundamental —, ampliou o rol de agentes legitimados ao controle concentrado, até então restrito ao procurador-geral da República, incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil sem exigência do requisito de pertinência temática, e ampliou o escopo material da revisão judicial, subordinando ao juízo do Poder Judiciário todo ato estatal — até mesmo os atos do poder constituinte de reforma.

Em 1993, a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio interpôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade 939/DF, argumentando que a cobrança do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), no ano em que foi instituído pela Emenda Constitucional 3, representava violação aos princípios da anterioridade e imunidade tributárias. Em acórdão de relatoria do ministro Sydney Sanches, firmou-se que “uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a guarda da Constituição”. Por entender que a cobrança do imposto violaria os direitos fundamentais dos contribuintes, interpretando os direitos e as garantias fundamentais para além daqueles enumerados no artigo 5º da Carta, e por serem cláusula pétrea os direitos e as garantias individuais, o Supremo acabou por declarar inconstitucional a Emenda 3[3].

E assim nasceria no Brasil o modelo “ultraforte” de jurisdição constitucional, como chamado por Virgílio Afonso da Silva[4]. Na teoria constitucional, reputa-se forte o modelo de jurisdição constitucional que atribui ao Judiciário a função de analisar a compatibilidade entre legislação e Constituição[5]. Caso entenda ser inconstitucional determinado ato normativo, é papel do Supremo negar vigência e suspender seus efeitos. Contudo, nos demais regimes constitucionais, pode o Congresso responder a decisão do tribunal mediante a promulgação de emenda que reinstitua sua opinião constitucional, não podendo os juízes debruçarem-se sobre a constitucionalidade dos atos do poder constituinte reformador. Sendo essa a situação de modelos fortes de judicial review, lógico concluir ser o modelo brasileiro ultraforte.

Assim, devidamente inserida no processo mundial de adoção e revisão de constituições para a implementação de Bill of Rights e judicial review, a Constituição Federal de 1988 promoveu a transferência de poder das instituições políticas aos órgãos judiciais. Seu desenho institucional confere ao Supremo a “última palavra” no circuito decisório formal que, de acordo com Conrado Hubner Mendes, compreende os procedimentos de deliberação e decisão previstos pelo texto constitucional[6]. Em razão dessa circunstância, a arena jurídica é palco de resolução de questões socialmente relevantes, a exemplo da união homoafetiva e da adoção de cotas raciais, devido à transferência de poder ao Judiciário, hoje autorizado a decidir questões que estavam fora de suas competências.

Tamanho foi o agigantamento do Supremo após 1988 que Oscar Vilhena Vieira elaborou a expressão “supremocracia” para denominar a “singularidade do arranjo institucional brasileiro”, fazendo referência a um só tempo à recente adquirida autoridade do Supremo sobre as demais instâncias do Poder Judiciário e à expansão da autoridade do Supremo em detrimento dos demais poderes, exercendo o papel tanto de órgão de proteção quanto de criação de regras constitucionais[7].

Entretanto, para chegar ao atual modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, dito ultraforte por Virgílio Afonso da Silva, foram cinco as transformações sofridas desde 1891, quando instituído o controle de constitucionalidade pela primeira Constituição Republicana. À época, seria o Supremo competente para processar e julgar “todas as causas propostas contra o governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposição da Constituição” e “quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos do estado em face da Constituição”. Cuidava-se de um modelo difuso e posterior de controle das leis, à imagem e semelhança do modelo estadunidense. À época, o tribunal mostrava-se reticente em exercer a revisão judicial, adotando uma linha de autocontenção em homenagem ao então vigente entendimento sobre a separação dos poderes.

Dos cinco passos rumo ao modelo concentrado e abstrato de jurisdição constitucional, seria o primeiro a Constituição de 1934, que condicionada a intervenção da União sobre os estados à aferição pelo Supremo Tribunal Federal se houve in casu afronta a princípios constitucionais sensíveis. O segundo passo foi dado com a Emenda Constitucional 16, que acrescentou no texto constitucional de 1946 a representação de inconstitucionalidade, posteriormente tornada na ação direta de inconstitucionalidade. Com a representação, o procurador-geral da República questionava no Supremo a constitucionalidade de leis e atos normativos federais ou estaduais.

Já depois de 1988, com a promulgação da Emenda Constitucional 3, seria instituída a ação declaratória de constitucionalidade e disciplinada a eficácia ex nunc de decisões do Supremo. Após seis anos, o Congresso Nacional promulgou as leis 9.868, que dispõe sobre o rito da ADI e ADC junto ao STF, e 9.882, que estabelece o processo e julgamento de ADPF.

Por fim, a quinta etapa desse processo de concentração do modelo brasileiro deu-se em 2004, com a aprovação e promulgação da Emenda 45, responsável pela Reforma do Judiciário. Entre as inovações, teve-se a criação da súmula vinculante, que, uma vez aprovada, vincularia não só o Poder Judiciário, mas também a administração pública direta e indireta, nos três níveis federativos. Ainda quanto ao controle difuso, a Emenda 45 condicionou a admissibilidade de recurso extraordinário à relevância jurídica, política, social ou econômica da matéria discutida nos autos.

Com o novo Código de Processo Civil, a entrar em vigência no próximo mês, o modelo brasileiro daria um sexto passo em direção à concentração na medida em que instituído um sistema vertical de stare decisis com a previsão de que as súmulas — e não apenas as súmulas vinculantes — e outros precedentes serão de observância obrigatória por todos os magistrados brasileiros, na forma do artigo 521 do novo CPC[8]. Com isso, “a admissão de um novo regime de precedentes concretiza uma nova fase do Direito Processual, onde os resultados obtidos no processo são qualificados por não se esgotarem nos limites da lide”[9].

O protagonismo do Supremo, porém, não pode se traduzir em um monopólio sobre a interpretação e o significado constitucionais. O teor aberto e abstrato dos dispositivos constitucionais deve ser considerado pelo tribunal ao aferir as decisões tomadas pela maioria nos espaços democráticos de deliberação — localizados nos poderes Executivo e Judiciário. As naturais e saudáveis discordâncias sobre a Constituição não devem ser recebidas como desafio à autoridade do Guardião da Constituição, mas somente como uma interpretação divergente, porém sincera, do texto constitucional. Como destaca Jeremy Waldron, “o desacordo à flor da pele sobre justiça continua a ser a condição mais gritante da política”[10]. Diante de divergências, deverá o Supremo prezar por uma postura de contenção que valorize a participação do povo na interpretação da sua Lei Maior.

Com isso, chega-se ao modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, onde coexistem o controle concentrado e o controle abstrato de constitucionalidade, em que pese a tendência de abstrativização do controle concreto típico do sistema norte-americano a favor de um sistema mais próximo do controle abstrato europeu. É no exercício de ambas essas funções, seja como Guardião da Constituição, seja como última instância recursal, e no respeito à democracia, que o Supremo Tribunal Federal vem desenvolvendo uma interpretação atualizadora ao texto constitucional, como será aqui demonstrado nas próximas colunas.


[1] MAUS, Ingeborg. O Judiciário como Superego da Sociedade — O Papel da Atividade Jurisprudencial na “Sociedade Órfã”. Novos Estudos, São Paulo, CEBRAP, n. 58, p. 183-202, 2000.
[2] HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: The Origins and Consequences Of The New Constitutionalism. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004.
[3] ADI 939, relator(a): ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18/3/1994 PP-05165 EMENT VOL-01737-02 PP-00160 RTJ VOL-00151-03 PP-00755.
[4] SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o Controle de Constitucionalidade: Deliberação, Diálogo e Razão. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, 250, p. 197-227, 2009.
[5] TUSHNET, Mark. Alternative Forms of Judicial Review. Michigan Law Review, [S.l.], v. 101, n. 8, p. 2.781-2.802, aug. 2003.
[6] VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 441-463, jul.-dez. 2008.
[7] MENDES, Conrado Hübner. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo: Saraiva, 2010.
[8] Artigo 521. Para dar efetividade ao disposto no artigo 520 e aos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem ser observadas:
I – os juízes e os tribunais seguirão a súmula vinculante, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
II – os juízes e os tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional, do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e dos tribunais aos quais estiverem vinculados, nesta ordem;
III – não havendo enunciado de súmula da jurisprudência dominante, os juízes e os tribunais seguirão os precedentes:
  1. a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional;
  2. b) da corte especial ou das Seções do Superior Tribunal de Justiça, nesta ordem, em matéria infraconstitucional;
IV – não havendo precedente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal seguirão os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem;
V – os juízes e os órgãos fracionários do Tribunal de Justiça seguirão, em matéria de direito local, os precedentes do plenário ou do órgão especial respectivo, nesta ordem.
[9] NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O Novo Código de Processo Civil e o Sistema de Precedentes Judiciais: Pensando um Paradigma Discursivo da Decisão Judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, 88, out./dez. 2014. Disponível em: <http://bid.editoraforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=213410>. Acesso em: 13 feb. 2016.
[10] WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999.
Fonte: Portal Conjur

Sobre suporte3

    Você pode gostar